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26 de Abril de 2024

Minha primeira audiência criminal

Publicado por Felipe Ribeiro
há 9 anos

Por Thiago M. Minagé

Certa vez escrevi que às vezes me confundo na certeza de que normalmente me engano, afinal de contas, e ainda bem, sou ser humano. Percebo inúmeras questões que reputo errôneas, mas parece que apenas, eu acho. Vejo nos últimos anos, de forma infelizmente não assustadora, o comportamento desrespeitoso que cresce estrondosamente nos palácios da justiça, onde não raramente me sinto o bobo da corte. A cultura do, eu estou certo, logo você está errado, eu mando, logo cale a boca, cada dia que passa, aumenta. Na verdade, só estou certo quando quero estar, assim pensa o grande Sr. Que exerce algum tipo de poder (esse maldito poder) no palácio.

Assim, quando em um dia comum, exercendo meu trabalho de forma comum, lidando com pessoas, não mais que seres comuns, resolvi anotar o desenrolar de uma pequena história, a qual acredito coincidir com muitos que porventura tenham a paciência de ler esse pequeno texto. Afinal, na época era apenas um jovem sonhador que queria mudar o mundo e colocar em prática tudo que ouvi.

O Sr. É advogado criminal? Perguntou uma senhora na porta de um presídio no Rio de Janeiro.

Sim, sou advogado criminalista.

Meu filho tá aqui preso. O Sr. Poderia ver o caso dele?

Sim, claro. Qual o nome? Se tiver o número do processo será melhor.

Após me passar nome e o número do processo, fui conferir quando percebi que se tratava de um crime de roubo no qual o indivíduo estava em prisão preventiva, com Audiência de Instrução e Julgamento marcada (AIJ). Identifiquei também que o juiz do processo tinha fama de linha dura (sendo educado) e logo pensei comigo mesmo no auge de meus devaneios: lá vem bomba, mas vamos em frente e ver no que isso vai dar.

Marquei uma reunião no escritório, os familiares do preso compareceram, fixo o valor dos honorários e a família resolve fechar. Avante nos trabalhos. Parcelado, mas são pessoas aparentemente honestas, que não trariam problemas.

Chego para audiência. O Juiz e o Promotor estavam conversando e continuam sem ao menos me cumprimentar, mesmo assim interrompo, dou boa tarde, digo que preciso falar com o acusado e ouço do juiz: rápido Dr. Não tenho o dia inteiro. Isso porque a audiência começou com 2h de atraso, ou seja, na pauta afixada no corredor constavam 06 (seis) audiências, todas marcadas para as 13h. Que loucura! Mas o juiz atrasou porque estava resolvendo algo que não interessava a ninguém. Afinal ele é o juiz!

Converso rapidamente com o acusado e, ao retornar, o promotor diz: detesto ladrão! O juiz arremata: eu detesto mais ainda, por mim ficariam todos presos o resto da vida. Clima pesado e constrangedor na sala de audiência. Até que a secretaria do juiz fala para os dois: me recuso advogar pra bandido, prefiro passar o resto da vida estudando pra concurso.Permaneço ouvindo tudo calado. O Juiz conclui o diálogo que não me incluía: isso mesmo, se for advogar prefiro que fique aqui e continue estudando.

Começa a audiência e informo que uma das testemunhas da defesa não compareceu e o juiz diz: Não vou suspender a AIJ, nem pensar. O promotor interrompe e diz: vai atrasar o processo desnecessariamente, Dr., Sinceramente, se fosse importante não teria faltado.O juiz sem dar tempo para qualquer tipo de argumentação, manda entrar o acusado e a primeira testemunha da acusação. O oficial de justiça diz: Exa. O policial não compareceu. O Juiz olha pra mim e diz: é Dr., o Sr. Está com sorte, vou suspender a AIJ senão o MP não terá provas a produzir. Levantei, assinei a ata e me retirei, sem mencionar nenhuma outra palavra.

Saio dali estarrecido, pois era minha primeira audiência criminal, recém-aprovado no exame da ordem, cheio de sonhos e ideais. Assim foi minha primeira vez. Hoje, calejado como um casco de tartaruga, pergunto: quantos advogados não tiveram seus sonhos interrompidos por situações como essas? Quantos se revoltaram ou mesmo se acovardaram como eu naquele momento? Do que adianta uma Constituição que garante prerrogativas ao Advogado e garantias a um acusado, se basta uma pessoa que tem a posição no exercício do poder ignorar tudo e nada é feito. Trata-se de um pequeno exemplo de como é o dia a dia de um advogado criminalista. Rejeitado, hierarquizado, e acima de tudo discriminado. Afinal de contas, o pré juízo formado naquela sala de audiência era de mero procedimento formal, para validar uma condenação anunciada.

Na mente daquelas pessoas, tratava-se de uma ladrão que pra eles é a pior das espécies, afinal, seus patrimônios poderiam ser atacados diretamente, não é. O advogado, um coitado que só está ali porque não passou em um concurso como o deles. Mas tentem agora reler o texto, e quem for advogado, me diga em que parte se identificaram e aquele que conseguir pensar além das palavras e enxergar o contexto exposto acima, perceba quantos crimes não descritos no CP foram praticados naquele momento. Será que realmente o patrimônio vale mais do que os sonhos de uma pessoa? Será que o advogado é aquele frustrado por não passar em algum concurso? Ali poderia ter ficado por terra todos meus ideais que afloravam pelos poros. Mas (in) felizmente aqui estou. Confesso que muitos que começaram comigo, desistiram por não suportar tamanho desprezo e descaso. Mas continuo afirmando que tenho orgulho por ser Advogado Criminalista.

Thiago M. Minagé é Doutorando em Direito pela UNESA/RJ; Mestre em Direito Pela UNESA/RJ, Especialista em Penal e Processo Penal pela UGF/RJ, Professor da Pós Lato Sensu da UCAM/RJ, de Penal e Processo Penal da UNESA/RJ, Coordenador da Pós Graduação Lato Sensu em Penal e Processo Penal da UNESA/RJ e da graduação da UNESA/RJ unidade West Shopping; Professor visitante da EMERJ (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro), Membro da AIDP – Associação Internacional de Direito Penal e Autor da obra: Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição – publicado pela Lumen Juris.

Fonte: http://justificando.com/2015/05/23/minha-primeira-audiencia-criminal/

  • Sobre o autorAdvogado criminalista, Prof. universitário, Especialista em Ciências Criminais.
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23 Comentários

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Excelente artigo Dr. Thiago.

Infelizmente esse tipo de situação é muito comum tratando-se de MAGISTRADOS ARROGANTES E PROMOTORES PEDANTES!!!

Eu pessoalmente já respondi uma série de representações na OAB/RJ por me insurgir contra esse tipo de de "magistrado/menino".

José Luiz Machado continuar lendo

Dr. Thiago mutio bom teu artigo.
Infelizmente isso ocorre ainda nas salas de audiência.

O advogado criminal simboliza a advocacia, simboliza a luta pela justiça, porque é o advogado criminal que se coloca a frente à autoridade para impedir que o arbítrio prevaleça, a força da justiça, as algemas, a cadeia, o Ministério Público e juiz de seu ativismo judicial.

Uma pergunta, será que existe imparcialidade nesses casos???

Forte abraço. continuar lendo

Caro Dr. Thiago, essas declarações do "fortes da justiça" já virou rotina!
Infelizmente eles se acham com o DOM de ser SUPERIOR a qualquer outra pessoa que milite na advocacia.
Mas acredito que as coisas vão melhorar a partir do momento que conseguirmos tirar essas lendas que não se atualizam. continuar lendo

Ser advogado é uma atividade de humilhação diária. Ninguém respeita a profissão, seja qual for o grau na hierarquia. continuar lendo